terça-feira, 12 de maio de 2009

Olhos de Gato

Estava com fome, procurando comida e infestado de parasitas: tanto externos, como internos. Não me sentia bem. Não sabia se valia à pena sobreviver. Uns seres, destes que vocalizam coisas que eu não entendo, que andam dentro de umas latas, fazendo um barulhão e poluindo tudo, chegaram perto de mim. Senti medo. Eu nunca gostei muito destes seres. Não sabia o que fariam comigo. Inicialmente, eles vocalizaram alguma coisa com um tom de pena. Realmente, minha situação era digna disso. Colocaram-me em uma caixa e me levaram para um lugar, aonde eu nunca havia estado antes.
Era alto, se aproximava do céu, porém, era cercado de concreto. A única visão da liberdade eram uns quadrados transparentes. O som do canto dos pássaros misturava-se com o das latas barulhentas. Chegando lá, uma jovem me recebeu, e as outras, cantavam alguma coisa, em tom de alegria. Vi um amor imenso em seus olhos. Os olhos dela eram idênticos aos meus. Percebi que aquela pessoa daria um novo significado à vida. A nossa vida.
A palavra que melhor definia Amália era, sem dúvida nenhuma, crise. Era extremamente indecisa. Não sabia se queria medicina ou direito, se gostava mais de chocolate branco ou preto, se vestia amarelo ou azul, se ficava com Airton ou Álvaro. E sempre, após suas decisões, chorava. Não importava o que decidisse, achava que tinha feito algo errado e acabado com sua vida. Era rotineiro: “como você está, Amália?” “Estou em crise”. E desmoronava. Extremamente sensível, tinha uma grande capacidade de amar. Magoava-se com facilidade, mas não conseguia demonstrar, nem guardar rancor. Enfim, era exatamente o que seu nome significava, além de uma pitadinha de crise.
Talvez por Amália ser assim, fui recebido e tratado como nunca havia sido antes. Livrei-me de todos os parasitas, tomei banho (argh!), ganhava a melhor comida do mundo, sempre prontinha. Sem falar que às vezes, quando eu era bonzinho, ganhava petiscos deliciosos. Adorava invadir o quarto dela, bem cedinho, subir em sua cama, andar sobre a sua cabeça e ronronar. E sentia que ela, apesar de inicialmente ficar furiosa por perder seus preciosos minutinhos de sono, adorava colocar-me embaixo das cobertas, para aproveitarmos aquele último soninho, juntos.
Eu não suportava ver a Amália em crise. Toda vez que ela ia para o seu quarto, jogava-se na cama e chorava, eu ia atrás. Deitava-me e, quando ela menos esperasse, dava uma mordida! Não me julguem antes de eu explicar: se eu ficasse ali, chorando junto, estaria alimentando a crise. Com a minha mordida, ela se irritava, brigava, gritava! E ficava tão ocupada comigo que até esquecia o motivo que a fez chorar. Minha técnica funcionou. Toda vez, antes de ficar triste, ela olhava para seus braços e logo abria um sorriso.
Infelizmente, aquele ambiente não era pra mim. Não gostava de apenas ouvir o canto dos pássaros, eu queria correr atrás deles. Queria sentir minhas patinhas na grama, na terra. Fui ficando agressivo. Eu queria de volta a minha liberdade. Mas não queria me separar da Amália. Ela entendeu isso, quando colocou uma saia e suas pernas estavam cheinhas de “marcas da paixão”, como ela costumava falar. Colocou-me dentro do carro, com todas as minhas coisas e me levou. Eu sentia que me separaria dela. Na viagem, tentei de tudo, inclusive vomitar. Como era muito preocupada,queria que ela pensasse que eu estava doente e que só os cuidados dela poderiam me fazer melhorar. Eu trocava a liberdade.
O local era lindo. Não tinha concreto. Era verde. Os pássaros cantavam pertinho de mim. Ela me olhou, com o mesmo olhar da primeira vez que a vi, porém, com uma lágrima caindo.
O tempo passou. Eu estava com os avós de Amália. Era muito bem tratado. E livre. Um dia, ela foi me visitar. O cabelo estava diferente, o perfume não era o que eu conhecia, sua expressão havia mudado. Mas o olhar era inconfundível: exatamente igual ao do primeiro encontro.

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